Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professor dos programas de especialização da Escola Paulista de Direito – EPD e da Escola de Direito de Campo Grande – EDCG. Professor de Direito Processual Penal e Processual Civil da Anhanguera Educacional. Membro do Conselho Editorial do departamento de internet (publicações eletrônicas) do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM. Advogado.
Antes da reforma de 2008, assim dispunha o Código de Processo Penal (CPP): “Art. 212. As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem repetição de outra já respondida”.
Com o advento da Lei 11.690/08, tal dispositivo passou a ter a seguinte redação: “Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”.
Como se nota, a respeito da inquirição das testemunhas, o CPP, abandonando o sistema presidencialista, passou a adotar o sistema inglês (direct/cross-examination). Pelo sistema presidencialista, o juiz iniciava as perguntas às testemunhas e, em seguida, as partes formulavam as suas perguntas por meio do magistrado. Com a adoção do sistema inglês, deve agora a parte, que arrolou a testemunha, iniciar a inquirição (direct-examination), sem a intermediação do juiz, abrindo-se à parte contrária, em seguida, a possibilidade de fazer diretamente as suas perguntas à testemunha (cross-examination). Neste sistema, ao juiz cabe apenas inadmitir as perguntas impertinentes, repetidas ou que puderem induzir a resposta, bem como complementar a inquirição, se porventura remanescerem pontos não esclarecidos.
Essa alteração buscou prestigiar o modelo acusatório (art. 129, I, CF), bem definindo a separação entre as funções de acusar, defender e julgar; colocando os sujeitos parciais como protagonistas da atividade probatória; buscando promover a equidistância entre o juiz e as partes e simplificando a colheita da prova. Nas palavras de Fauzi Hassan Choukr, “A não comunicação direta das partes com suas testemunhas é um traço característico do modelo inquisitivo de inspiração europeu-continental. Com efeito, o direito brasileiro, salvo a situação do Tribunal do Júri, não permitia a comunicação direta entre as partes e as testemunhas, sendo o discurso intermediado pelo magistrado, acarretando desta forma uma interrupção que, antes de recair exclusivamente sobre a pertinência do tema, interfere no próprio conteúdo do diálogo”. E, referindo-se à nova redação do aludido art. 212, frisa que “A ordem de inquirição indicada no artigo é clara: as partes têm a fala inicial e o juiz a fala supletiva, invertendo-se a lógica do modelo anterior. É um passo na direção da acusatoriedade (…)” (Código de Processo Penal – comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 414-415).
Contudo, em que pese a clareza do novel art. 212 do CPP, ainda há magistrados que inauguram a inquirição das testemunhas, esquecendo-se de que, no modelo acusatório, a sua iniciativa probatória, quando muito, deve ser meramente supletiva. E essa postura também encontra amparo na doutrina. Segundo Guilherme de Souza Nucci, “o juiz, como presidente da instrução e destinatário da prova, continua a abrir o depoimento, formulando, como sempre fez, as suas perguntas às testemunhas de acusação, de defesa ou do juízo. Somente após esgotar o seu esclarecimento, passa a palavra às partes para que, diretamente, reperguntem” (Manual de processo penal e execução penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 474-475). Ademais, deixando de lado o modelo acusatório (art. 129, I, CF) e a presunção de inocência (art. 5.º, LVII, CF) – presunção esta que só pode ser afastada pela acusação e não ao magistrado -, argumenta-se ser justificável que o juiz inicie a inquirição, na busca da verdade real. Nesse sentido: TJSP -Apelação nº 9000001- 69.2005.8.26.0125 – 10.ª Câmara de Direito Criminal – j. 02.02.2012.
Acertadamente, interpretando a nova disposição do art. 212 do CPP, a 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vinha entendendo que a inversão da ordem de inquirição das testemunhas (primeiro o juiz, depois as partes) caracteriza nulidade absoluta do processo, por contrariar o devido processo legal (STJ – HC 145.182/DF – DJe 10.05.2010; HC – 121.216/DF – DJe 01.06.2009); enquanto a sua 6.ª Turma, diversamente, vinha considerando que tal inversão acarreta mera nulidade relativa, devendo, pois, para ser reconhecida, haver alegação oportuna, com a demonstração do respectivo prejuízo (STJ – HC 103.523/PE – j. 03.08.2010; RHC 27.555/PR – j. 09.08.2010; HC144.909/PE – Dje 17.03.2010; HC 121.215 – Dje 22.10.2010).
Posteriormente, conforme noticiado no Informativo 485 do STJ, “após aprofundado estudo dos institutos de Direito Processual Penal aplicáveis à espécie, o Superior Tribunal de Justiça sedimentou entendimento no sentido de que a inobservância do modelo legal de inquirição das testemunhas constituiria nulidade relativa, sendo necessário para o reconhecimento do vício, arguição em momento oportuno e comprovação de efetivo prejuízo” (STJ – HC 210.703/SP – j. 20.10.2011). Nesse sentido, também tem se posicionando o Supremo Tribunal Federal (STF – HC 103.525/PE – Dje 26.08.2010).
Com base nesse entendimento, o STJ anulou audiência de instrução, e todos os atos posteriores, por ter a juíza, em determinado processo, realizado dezenas de perguntas às testemunhas de acusação, antes da sua inquirição direta pelas partes. Considerou-se que os questionamentos demonstraram o interesse na colheita de provas de caráter eminentemente acusatório. A defesa pediu para que constasse da ata a inversão da ordem de indagação prevista no CPP. Asseverou-se que, no momento da inquirição das testemunhas de defesa, a juíza não realizou perguntas, tendo, assim, nesse contexto, restado claro o prejuízo à defesa do acusado. Determinou-se, por fim, que nova audiência fosse realizada, com respeito ao art. 212 do CPP (STJ – HC 212.618/RS – j. 24.04.2012).
Com base no exposto, vemos um ponto positivo e outro negativo no posicionamento dos tribunais superiores. Como positivo, temos o reconhecimento da necessidade de se respeitar o art. 212 do CPP, ou seja, de se permitir que as partes iniciem a inquirição das testemunhas, deixando-se para o juiz, em seguida, apenas a possibilidade de suplementá-la, acerca dos pontos não esclarecidos. Como negativo, temos a categorização, como mera nulidade relativa, do desrespeito ao art. 212 do CPP. É que, pelo tradicional regime da nulidade relativa, deve-se demonstrar oportunamente o prejuízo para que seja ela reconhecida, o que, muitas vezes, é difícil, para não dizer impossível.
No caso mencionado, julgado pelo STJ, bastaria afirmar que não houve prejuízo (decorrente do fato de a juíza ter inicialmente perguntado, e por dezenas de vezes, apenas às testemunhas de acusação), sob o argumento de ter sido franqueada à defesa a ampla possibilidade de (re)perguntar, o quanto bem entendesse, a todas as testemunhas (de acusação e de defesa); de que o simples fato de terem sido feitas perguntas pela juíza, apenas às testemunhas de acusação, não denota prejuízo algum, já que as testemunhas têm o dever de dizer a verdade e a prova respectiva aproveita a ambas as partes (regra da comunhão da prova); e de que as perguntas feitas pela juíza serviram para a busca da verdade real (!). Diante dessa retórica, comum e infelizmente evidenciada na jurisprudência, como a defesa “demonstraria” o prejuízo (mormente a contaminação subjetiva do julgador), para lograr o reconhecimento da nulidade do processo? Cremos que de nenhum modo a defesa conseguiria essa “demonstração”, enquanto letra morta seria feita do art. 212 do CPP. Eis o motivo pelo qual, pensamos, a questão deveria ser tratada sob a rubrica da nulidade absoluta (que não se submete à preclusão e dispensa a demonstração do prejuízo), tal como vinha entendendo a 5.ª Turma do STJ.
De todo modo, considerando o modelo acusatório adotado pela Constituição Federal e, assim, os motivos que inspiraram a reforma processual de 2008, melhor seria que, simplesmente, fosse respeitada a clareza do atual art. 212 do CPP, com o que se evitariam tais discussões e a afronta ao devido processo legal.